O meu amigo fora claro: o seu prédio ficava entre a igreja e a livraria.
Cedinho nessa manhã de Páscoa ali estava eu totalmente perdido, apesar
das indicações. Ele dissera que não havia nada que enganar, porque a
grande cruz no cimo da torre se via à distância. Além disso eu
visitara-o há uns anos e esperava reconhecer o local. Apesar disto, não
fazia a menor ideia onde me devia dirigir. Estava totalmente perdido.
A
razão da desorientação era fácil de explicar. As referências eram
evidentes e o sítio não tinha nada que enganar. Só que naquela vila,
neste estranho mês de Abril, a Páscoa amanhecera sob uma espessa capa de
nevoeiro. À minha frente poderia estar uma igreja, um descampado ou um
exército pronto a atacar. Naquela esquina eu mal via a rua, quanto mais a
torre, a cruz ou a livraria. Pouco enxergava para lá do meu nariz.
Nessas condições, por mais claras que fossem as indicações, não havia
maneira de saber onde me dirigir. Em pleno dia só via a brancura vaga e
cega do que os ingleses chamam "sopa de ervilhas".
Percebi que o
nevoeiro é uma das coisas mais terríveis. A escuridão é rompida por uma
luz mínima. Se fosse noite não teria dificuldade em encontrar a igreja, a
livraria, o prédio. Bastava um candeeiro para me orientar. Mas no
nevoeiro não há luz que me guie. A escuridão, por mais negra que seja,
não resiste ao nascer do Sol, que não apenas a rompe, como um fósforo,
mas a despedaça e elimina. Mas o sol nada pode com o nevoeiro. Eu sei
que o sol está lá em cima. É ele que me permiter ver-me a mim mesmo e ao
nevoeiro. Mas o sol fica impotente perante o nevoeiro. Sei que o sol,
eventualmente, vencerá o nevoeiro. Daqui a horas, como sempre em Abril, a
névoa evapora e o dia será claro e quente. Mas agora não se vê dois
metros adiante.
Existe um paralelo na vida espiritual. Vaidade,
raiva, cobiça, sensualidade criam terrível escuridão na vida humana, e
eliminam a bondade, alegria, paz. Mas no meio da pior escuridão qualquer
pequena luz anula as trevas. Um momento bastou para despedaçar a
vaidade de Nicodemos, a raiva do bom ladrão, a cobiça de Zaqueu, a
sensualidade da adúltera. Mas há algo muito pior que a escuridão do
pecado. Existe o nevoeiro da presunção, obstinação, inveja, desespero.
Contra eles a luz nada pode. Jesus esteve diante da presunção de Caifás,
da obstinação de Herodes, da inveja de Judas, do desespero do mau
ladrão, mas eles não viram a luz: "Todo o pecado ou blasfémia será
perdoado aos homens, mas a blasfémia contra o Espírito não lhes será
perdoada. Se alguém disser alguma palavra contra o Filho do Homem, há-de
ser-lhe perdoado; mas, se falar contra o Espírito Santo, não lhe será
perdoado, nem neste mundo nem no futuro" (Mt 12, 31-32).
O
nevoeiro é o que mais devo temer. Vivo à sombra da cruz, e toda a minha
felicidade dela depende. Sou feliz porque sei que o Senhor do universo,
que fez o Céu e a Terra, veio a este mundo por minha causa, e se
ofereceu à morte mais horrível para pagar os meus pecados. E depois
ficou: ficou na Palavra, no sacrário, quando dois ou três nos reunimos. O
Senhor do universo mostra um carinho próximo e pessoal por mim,
enviando o seu anjo, que me acompanha e guarda em cada passo. Apesar de
saber isso, estou muitas vezes perdido, assustado, desorientado, por
causa do nevoeiro. O nevoeiro que me esconde a cruz da igreja. Aquela
cruz, que deveria ser o sinal do meu destino, é oculta pelo nevoeiro do
meu desespero. O nevoeiro, que me desorienta e até me faz perder a
confiança no meu anjo da guarda, é mais forte que a minha fé. O mais
forte é o nevoeiro. Que pode ser mais forte que o nevoeiro?
Então
ouvi uma voz. Era o meu amigo que me chamava. Imaginou que o nevoeiro me
tivesse desorientado e decidiu vir à rua ao meu encontro. Então
percebi. O meu anjo tinha-o enviado. E agora sei que há algo mais forte
que o nevoeiro: a amizade. A amizade que faz presente a cruz e o anjo da
guarda. "Quem vos recebe, a mim recebe; e quem me recebe, recebe aquele
que me enviou" (Jo 10, 40).
João César das Neves, 21/4/2014, Diário de Notícias
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